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março 09, 2004


True Believers


Via Blasfémias, um post de Filipe Moura no Blogue de Esquerda (II) [meus destaques]:
"Embora não parecessem assim quando eram ouvidos, os «gritos» de Dean eram na verdade bem tímidos, e foram proferidos numa altura em que a sala cheia dos seus apoiantes o ovacionava em peso. Quem estava na sala nem terá ouvido Dean gritar. Mas o som captado pelo microfone, ao ser emitido fora deste contexto, dava uma impressão totalmente errada ao ouvinte. Emitir esse som só se justificaria por lapso ou por má fé. As cinco principais estações de televisão americanas reconheceram que foi por lapso e pediram desculpas ao candidato. Só que a primeira impressão conta muito, o mal já estava feito e a emissão já tinha ido para o ar. Assim se destruiu a candidatura do único político que poderia trazer alguma coisa nova à política americana, para além de ser o único dos principais candidatos que se opusera, incondicionalmente, desde o início, à guerra com o Iraque."

Mas, em Iowa, antes do referido discurso, Dean já tinha perdido a liderança nas sondagens!

Presumo que o Filipe Moura não teve a oportunidade de ver o programa CNN Presents: True Believers sobre os bastidores da candidatura de Howard Dean, transmitido no passado fim-de-semana. É que os "gritos" foram apenas o culminar de uma campanha mal organizada - liderada por Joe Trippi.

A seguir, tento enumerar alguns dos factos relevantes da campanha:
[31 de Maio, 2002] Dean é o primeiro a apresentar a candidatura à presidência pelo partido Democrata;

[Primavera, 2003] Com discursos contra a guerra no Iraque, Dean ganha rapidamente o apoio dos activistas;

[Primavera/Verão, 2003] Através do blog no seu site e a organização dos apoiantes via Meetup.com, a base de apoio à candidatura de Dean cresce rapidamente - Joe Trippi, director de campanha de Dean, é um fervoroso adepto do poder da internet;

[Agosto, 2003] Dean aparece na capa das revistas Time e Newsweek;

[30 de Setembro, 2003] Dean angaria 14,8 milhões de dólares (a maioria do dinheiro foi doado via internet, em pequenas quantias) e quebra o recorde da candidatura de Bill Clinton;

[8 de Novembro, 2003] A campanha de Dean recusa cerca de 19 milhões de dólares de fundos federais - para evitar o limite de despesas de 45 milhões de dólares, imposta pela lei de financiamento;

[Outono, 2003] Os restantes canditados democratas começam a atacar Dean, líder nas sondagens;

[15 de Dezembro, 2003] Dean comenta que a captura de Saddam não torna o país mais seguro - os outros candidatos atacam-no pela sua posição;

[8 de Janeiro, 2004] A NBC transmite excertos de uma entrevista, de quatro anos antes, em que Dean acusa o sistema caucus em Iowa estar dominado por "extremistas e interesses especiais";

[19 de Janeiro, 2004] Dean fica em terceiro nas primárias do estado de Iowa (Kerry 38%, Edwards 32%, Dean 18%), apesar de um mês antes estar a liderar as sondagens;

[19 de Janeiro, 2004] Durante o discurso de derrota, Dean esquece as funcionalidades do microfone e junta os seus gritos aos da audiência;

[22 de Janeiro, 2004] Entrevista de Diane Sawyer (ABC News) ao casal Dean - reacções destes às notícias sobre o discurso dos "gritos" (nenhuma justificação sobre o microfone);

[20 a 27 de Janeiro, 2004] Dean faz campanha em New Hampshire (próximas primárias) - Joe Trippi não acompanha o candidato e permanece no quartel-general da campanha em Burlington, Vermont;

[27 de Janeiro, 2004] Dean fica em segundo nas primárias de New Hampshire (Kerry 39%, Dean 26%);

[28 de Janeiro, 2004] Diane Sawyer investiga a história dos "gritos" e descobre que o microfone possui uma funcionalidade de eliminação do ruído de fundo - apresenta video do ponto de vista da audiência (não se ouvem os "gritos");

[28 de Janeiro, 2004] Joe Trippi, director da campanha de Dean, demite-se;

Logo de início, Dean conseguiu uma significativa vantagem nas sondagens devido ao lançamento da sua candidatura antes dos restantes candidatos e à estratégia de angariação de apoio na internet. No entanto, os ataques às afirmações de Dean (defesa das "pessoas com bandeiras confederadas nos seus carros", captura de Saddam, entrevista sobre o interesses especiais do caucus de Iowa, microfone, etc) e a incapacidade da sua organização gerir estas crises, tiveram como consequência a perda da liderança conquistada e, consequentemente, as hipóteses de vitória nas primárias.

Ainda, os seus apoiantes eram maioritariamente jovens, muitos não habitavam no estado de Iowa e poucos alguma vez participaram numa campanha eleitoral. A vontade de mudança não conseguiu suplantar a inexperiência destes jovens apoiantes - experiência que seria necessária para persuadir o eleitorado.

Não foi a cobertura mediática do discurso em Iowa que "destruiu a candidatura de Dean". Foi, sim, a organização que este montou para gerir a campanha. E as suas posições políticas!